Rui Santos escreve uma carta aberta a Cristiano Ronaldo “mereces que o País te reconheça”
O comentador da CNN Portugal, Rui Santos, escreveu uma carta aberta a apoiar Cristiano Ronaldo. Para Rui Santos, os portugueses têm memória curta e diz que o craque português merece ser reconhecido pelo próprio país.
A carta aberta de Rui Santos:
“A opinião é livre, e graças a Deus que é livre, mas sou de uma escola, quando a democracia ainda gatinhava, em que a opinião era, no jornalismo, reservada a quem já tinha alguma experiência e provas dadas para poder ser credível.
Quer dizer: quando se chegava ao patamar de ‘dar opinião’, no plano profissional, era porque já havia muita estrada percorrida, muitas quedas em buracos mais ou menos (in)visíveis, muitas marteladas dadas na bigorna do dia-a-dia.
Não quero ser exemplo, mas quando subi às tribunas dos principais estádios portugueses, alguns dos quais já não existem e foram substituídos por outros que entretanto estão a necessitar de modernização, em função da brutal evolução tecnológica que alterou por completo as nossas vidas, havia realizado muitos jogos em campo pelado, em divisões inferiores e nos escalões etários mais baixos, muito contacto com os protagonistas e com jornalistas mais velhos, de referência; muitas reportagens, entrevistas, com jogadores, treinadores, dirigentes, árbitros, enfim, já havia pegado no batente, com poucas horas de sono e noites sem ir à cama.
Isto mudou muito; não é de saudosismo que estamos a falar, porque o Mundo não pára e temos de saber acompanhar a evolução, com recriações permanentes, tentando não atropelar ninguém (o que cada vez parece mais difícil de realizar).
O que me custa é ver o formigueiro e sobretudo a desinência de um conjunto de ‘juízes’ que se atiram a ti como gato a bofe, não percebendo a desproporção, a desabilitação e até o ridículo das suas sentenças.
Tu, Cristiano, és de origens humildes, sabes o que são as necessidades das pessoas, que precisam, muitas delas, de trabalhar no duro para alimentar os seus filhos e ter uma vida minimamente digna.
Nasceste com um dom de singularidade com o qual, ao teu nível, muito poucos se podem comparar, e soubeste transformar esse dom numa carreira inimitável.
Com muito esforço e dedicação deves a ti próprio, em primeiro lugar, tudo aquilo que conseguiste.
Portanto sabes, como eu sei, em dimensões naturalmente distintas, que merecem o meu maior respeito e consideração, a dificuldade que se coloca à nossa frente, de tantos milhões de mortais, em provar o que parte da sociedade não aceita, por inveja: o êxito dos outros.
Deves ser o primeiro a reconhecer os erros que já cometeste, acredito sinceramente que tens noção deles e o primeiro teve que ver com a decisão que tomaste, ainda sob contrato, de deixar o Manchester United.
Acreditaste no poder da tua carreira, dos maravilhosos golos que marcaste, das fantásticas exibições com as quais nos brindaste, dos recordes que te propuseste bater, sucesso atrás de sucesso; acreditaste que ainda estava activo o teu poder de influência junto daqueles que te bajularam e a quem deste muito dinheiro a ganhar; acreditaste que o bilhete de identidade é apenas um número — e sabes que mais? Acreditaste que o hábito faz o monge.
Há um momento em que o hábito já não faz o monge.
Talvez até tenha sido excessivo, nalguns momentos, os treinadores terem feito tudo à tua medida. Tens o exemplo da Seleção Nacional. Mas não foi ela e todos aqueles que carregaste nas tuas asas os principais beneficiários do teu talento e sobretudo do trabalho que nunca negligenciaste?
Sim, foste um exemplo no futebol. És uma lenda no futebol, e percebo a tua frustração. De olhares os olhos de ERIK TEN HAG e não vislumbrares a visão de um mínimo de reconhecimento.
Desilude-te. A sociedade é assim: espreme-te como uma laranja, tira-te o sumo todo que durante anos fez de ti uma laranja com sumo infindável e quando tu achas que a laranja ainda tem sumo para dar, desde que seja bem espremida, vês-te transformado num limão. Ácido, azedo, seco.
Graças a Deus e à D. Dolores que bem podes relativizar a tua infelicidade porque o Mundo parece estar cada vez mais louco, e a escassez — da qual não te podes queixar, felizmente — vai tomar conta disto tudo.
Dizia que há um momento em que o hábito já não faz o monge. Tu queres provar que tens estatuto e (ainda) tens valor, bastava-te estalar os dedos para as coisas te aparecerem realizadas, qualquer coisa que te apetecesse, mas este ciclo que estás a (in)cumprir no Manchester United demonstra que já não é assim. E muitos dos que outrora te bajularam ou aceitaram de alguma forma a tua supremacia (o que fazer, então?) riem-se como hienas da forma como estás a demostrar a tua indignação.
ERIK TEN HAG está a servir-se de ti para afirmar a liderança dele e tu estás a alimentar-lhe essa soberba.
Não lhes dês esse prazer.
Tu sabes que quando abandonas o banco com o jogo ainda a decorrer, ainda opor cima em momento de felicidade dos adeptos do Manchester e de TEN HAG (2-0 ao Tottenham) esse impulso vai correr o Mundo.
O assumir que estás na fase do abandono não é boa para ti, porque a conclusão é contrária à tua inteligência de não perceberes que foste abandonado.
Mereces muito mais.
Mereces que o País te reconheça o que fizeste por ele.
Portugal foi falado durante anos a fio por bons motivos por causa de ti.
És um orgulho e serás um orgulho para aqueles que têm a lucidez de perceber o que representas. Não apenas para ti e para os teus, para a tua mulher e para os teus filhos, mas para todos aqueles que não são ingratos.
A ingratidão é uma coisa muito feia e, mesmo aqueles que não estão em condições de perceber o que isso é e falam de ti como se fosses um saco de lixo, sabem que dificilmente nascerá outra outra vez em Portugal, na Madeira ou no continente, um jogador de futebol com as tuas qualidades e com a capacidade de fazer aquilo que tu fizeste.
Como homem que tenho dedicado a vida ao jornalismo e ao futebol ser-te-ei eternamente grato. Não gosto, confesso, de te ver neste papel.
A solução não me parece ser tentar virar o balneário contra ele, até porque a correlação de forças mudou. Não vais ser titular por decreto e TEN HAG não vai capitular. E, estando a ganhar, ninguém lhe vai tirar o tapete. Não percas energias com isso.
Cerra os dentes, como sempre fizeste, atira-te aos treinos como se não houvesse amanhã e mesmo que vejas no olhar de TEN HAG um olhar de vingança (ele vai querer provar que tem razão) não te importes.
Tens duas soluções: empenhas-te para estares no Mundial na melhor ‘forma’ possível, engolindo sapos e elefantes, o zoo inteiro — e preparas uma solução para janeiro, que também não será fácil, mas aí terás o efeito que o Campeonato do Mundo possa (ou não) proporcionar. E segues. Ou tomas a decisão de parar, no final do Mundial, sobretudo se as coisas te correrem bem. Porque há uma coisa que não vais conseguir fazer: parar a máquina do tempo.
Vamos lá, Cristiano, mostra a tua fibra porque, aqui em Portugal, há muita gente grata, acredita. Somos milhões.”